domingo, 28 de maio de 2017

Angústia - Um parafuso

"A minha camisa estufa no peito, é um desastre. Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar dinheiro perdido no chão, há sempre muito pano subindo-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo, ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estes movimentos contínuos dão-me a aparência de um boneco desengonçado, uma criatura mordida por pulgas. A camisa sobe constantemente, não há meio de conservá-la estirada. Também não é possível manter a espinha direita. O diabo tomba pra frente, e lá vou marchando como se fosse encostar as mãos no chão. Levanto-me, sou um bípede, é preciso ter a dignidade dos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andar empertigado, e eu curvar-me para a terra, como um bicho! Se dr. Gouveia passar por mim, finjo não vê-lo. É impossível pagar o aluguel da casa. Não pago. Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe.[...] Pensam que vou encolher-me, sorrir, o chapéu na mão, os ombros derreados? Pensam? Estão enganados. Sou um bípede.[...] ao cabo de vinte minutos de exercício penoso o meu corpo toma a configuração de um arco[...] É bom não levantar a espinha. Se a levantasse, teria de baixá-la de novo a cada passo, aflito e apressado, o chapéu na mão. Assim, não vejo ninguém, caminho batendo nos transeuntes, enrolando palavras de desculpa, entrando no futuro como um parafuso."
Angústia - Graciliano Ramos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário