domingo, 28 de maio de 2017

Angústia - Um parafuso

"A minha camisa estufa no peito, é um desastre. Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar dinheiro perdido no chão, há sempre muito pano subindo-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo, ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estes movimentos contínuos dão-me a aparência de um boneco desengonçado, uma criatura mordida por pulgas. A camisa sobe constantemente, não há meio de conservá-la estirada. Também não é possível manter a espinha direita. O diabo tomba pra frente, e lá vou marchando como se fosse encostar as mãos no chão. Levanto-me, sou um bípede, é preciso ter a dignidade dos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andar empertigado, e eu curvar-me para a terra, como um bicho! Se dr. Gouveia passar por mim, finjo não vê-lo. É impossível pagar o aluguel da casa. Não pago. Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe.[...] Pensam que vou encolher-me, sorrir, o chapéu na mão, os ombros derreados? Pensam? Estão enganados. Sou um bípede.[...] ao cabo de vinte minutos de exercício penoso o meu corpo toma a configuração de um arco[...] É bom não levantar a espinha. Se a levantasse, teria de baixá-la de novo a cada passo, aflito e apressado, o chapéu na mão. Assim, não vejo ninguém, caminho batendo nos transeuntes, enrolando palavras de desculpa, entrando no futuro como um parafuso."
Angústia - Graciliano Ramos.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Fahrenheit 451 - Tempos pós-modernos

-- A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas? [...]

-- Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar não é? Organizar, tornar a organizar e superorganizar super-superesportes. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão para cá, para lá, a toda parte, a parte alguma. Os refugiados da gasolina.

--[...] A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus. (pg. 78)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Aurora - Confiança na moral

- Foi então que empreendi uma coisa que não podia ser para todos: desci para as profundezas; passei a perfurar o chão, comecei a examinar e a minar uma velha confiança sobre a qual, há alguns milhares de anos, nós, os filósofos, temos o costume de construir, como sobre o terreno mais firme -- e reconstruir sempre, embora até hoje toda construção tenha ruído: comecei a minar a nossa confiança na moral. (pg. 14)

Aurora - Subsolo

Neste livro encontra-se agindo um ser "subterrâneo" que cava, perfura e corrói. Ver-se-á, desde que se tenha olhos para tal trabalho nas profundezas, como avança lentamente, com circunspecção e com uma suave inflexibilidade, sem que se perceba em demasia a angústia que acompanha a privação prolongada de ar e de luz; poder-se-ia até julgá-lo feliz por realizar esse trabalho obscuro. Não parece que alguma fé o guie, que alguma consolação o compense? Talvez queira ter para ele uma longa obscuridade, coisas que lhe sejam próprias, coisas incompreensíveis, secretas, enigmáticas, porque sabe o que terá em troca: sua manhã só para ele, sua redenção, sua aurora?... Certamente voltará: não lhe perguntem o que procura lá em baixo; ele mesmo o dirá, esse Trofônio, esse ser de aparência subterrânea, uma vez que de novo se tenha "tornado homem". Costuma-se esquecer inteiramente o silêncio quando se esteve soterrado tanto tempo como ele, só tanto tempo como ele. (pg. 13)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Siddhartha - Amar?

Posso amar uma pedra, Govinda, e também uma árvore ou um pouco de casca. Tudo isto são coisas, coisas que nós podemos amar. Mas não posso amar palavras. É por isso que não aprecio as doutrinas, não têm dureza ou moleza, não têm cores, não têm arestas, não têm cheiro, não têm gosto, nada têm senão palavras. Talvez seja esto que te impede de encontrares a paz, talvez sejam as palavras em excesso. Porque também libertação e virtude, também Samsara e Nirvana são meras palavras, Govinda. Nada existe que seja o Nirvana; apenas existe a palavra Nirvana. (pg. 148)

Siddhartha - As palavras

As palavras não fazem bem ao sentido oculto, tudo o que é igual torna-se sempre um pouco diferente quando é dito em voz alta, um pouco falseado, um pouco louco -- sim, e também isto é muito bom e me agrada bastante, também com isto estou de acordo, que aquilo que é tesouro e sabedoria para uma pessoa, seja sempre uma loucura para as restantes. (pg 147)

Siddhartha - Amor à vida

Por isso tudo que existe me parece bom, a morte e a vida, o pecado e a santidade, a sensatez e a loucura, tudo é necessário dessa maneira, tudo necessita apenas do meu acordo, da minha boa vontade, da minha afetuosa compreensão; assim tudo é bom para mim, pode apenas encorajar-me, nunca me pode prejudicar. Senti no meu corpo e na minha alma que precisava muito do pecado, precisava da luxúria, da ambição e da vaidade, precisava do desespero mais ultrajante, para aprender a não lhes resistir, para aprender a amar o mundo, para não mais o comparar com qualquer outro mundo por mim desejado ou imaginado, com uma forma de perfeição concebida por mim, mas sim para o deixar ser como é, para amá-lo e sentir-me feliz por lhe pertencer. Isto, Govinda, são algumas das ideias que me acorreram ao espírito. (pg. 146)